Ana Filipa Candeias
Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Entre ciência e senso comum, uma das marcas distintivas da ação política de Mariano Gago como pedagogo e administrador público de ciência foi a transparência com que defendeu o propósito de – a par do robustecimento do «sistema científico e técnico nacional» -, socializar a ciência, consciente de que – num país de pequena dimensão com magra tradição de produção e mecenato científicos -, uma ciência que não fosse acarinhada pelos cidadãos comuns, que não entrasse nos hábitos dos jovens através da curiosidade estimulada por um ensino de claro alinhamento experimental, que não dialogasse à escala global, jamais teria condições de ser aceite como destinatária legítima de uma parte do investimento político e do esforço de financiamento público, sobretudo em épocas de escassez de recursos. Mariano Gago deu pois particular atenção ao ensino experimental e à divulgação das ciências no conjunto do tecido cultural ao defender a necessidade de «colocar a ciência – pelo menos alguns dos seus resultados e uma parte dos seus métodos, ao alcance de não-cientistas»[1], ou seja, batendo-se por uma intensificação das trocas entre esferas da produção cultural e da ação pública, protegendo também «o papel da história da ciência nos currículos do ensino científico para demonstrar em que medida a educação científica tem as suas raízes na sociedade»[2].
Recordamos este mês a figura de mediador das ciências que foi Mariano Gago, recuperando o discurso que proferiu aquando da tomada de posse como presidente da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, em 9 de maio de 1986, cumpridos assim 30 anos desde que o professor catedrático do Instituto Superior Técnico abraçou a carreira de gestor público da ciência em Portugal – caminho que alguns anos depois (1995) haveria de o catapultar à ribalta num novel Ministério da Ciência e da Tecnologia. Num discurso de 10 páginas, lido perante o ministro do Plano, Luís Valente de Oliveira, o Secretário de Estado da Investigação Científica, Eduardo Arantes e Oliveira, e o vice-presidente da Junta, Mário Abreu, Mariano Gago fez questão de introduzir a palavra «criatividade» no léxico das dissertações institucionais sobre política científica, insistindo na necessidade de inscrever Portugal na rede mundial de «produção de ideias», «(…) [n]a ideia de Portugal como país produtor de bens onde se incorpore (…) inteligência e criatividade» recusando «a hipótese de colocação irremediável do país na orla dos territórios subdesenvolvidos e colonizados»[3]. Ciente de que «a criatividade e a inovação só se programam até certo ponto»[4], acérrimo defensor do lugar da ciência na cultura a par da responsabilização dos produtores de ciências, insistiu no papel essencial que nesse processo caberia à comunicação e à educação científicas. A JNICT, organismo que veio então a dirigir e para o qual reclamou uma missão central e tríplice de coordenação, planificação e avaliação -, foi a sua grande plataforma de ensaio a partir da qual lançou as Comissões Coordenadoras de Investigação e outros grupos de trabalho especializados como o «Núcleo de Divulgação Científica e Técnica»[5]. Foi aí também que promoveu as «Jornadas Nacionais de Ciência e Tecnologia» (1987), a que pretendeu atribuir uma dimensão de fórum público aberto e com caráter regular. Sem esquecer os alicerces já estabelecidos pelos seus antecessores, entre os quais se contavam o malogrado José Mendes Mourão que Mariano Gago vinha substituir, logo se propôs adaptar a Junta a uma organização mais flexível e dinâmica assente em gabinetes com funções especializadas, tais como lhe surgiam necessárias para os fins que considerava imprescindíveis: a «dinamização das relações com o meio científico e tecnológico»[6], o estudo orientado para a «a criação de uma agência especializada no fomento da criatividade e inovação (…) especialmente vocacionada para a valorização industrial de patentes e inovações, (…) para o estímulo à divulgação e à resolução de problemas industriais que requerem trabalho de investigação ou inovação»[7]. Num outro plano merecem igualmente ser lembradas as iniciativas que visaram reforçar a presença portuguesa nos fóruns internacionais mais significativos da época como a Agência Espacial Europeia ou o Programa Nuclear da CEE. Numa nova conjuntura nacional e internacional, a chegada de Mariano Gago à presidência da JNICT veio acelerar a promoção de uma cultura informacional de rede e de partilha entre instituições, laboratórios, unidades de investigação, universidades e politécnicos.
Referimos no preâmbulo como Mariano Gago teve como preocupação primordial resolver o défice de educação científica e experimental da população portuguesa em geral e da população estudantil em particular. Essa preocupação acompanhou-o em diversos momentos da sua vida e no discurso de 86, ficava novamente plasmada ao conceder à «dinamização do ensino experimental… [a] grande prioridade estratégica a empreender em colaboração com o ministério da educação e com as sociedades científicas»[8]. Uma ideia que haveria de reiterar alguns tempos depois no seu «Manifesto para a Ciência em Portugal» (1990), gizada numa estratégia em quatro andamentos: educação, internacionalização, comunicação, monitorização. Adiadas umas, cumpridas outras, porquanto sobre o mais ambicioso programa de ensino experimental das ciências que tanto defendeu, só timidamente tem entrado nas escolas portuguesas, pese embora os meios didáticos e as redes de difusão do conhecimento de que o país hoje dispõe. Foi aliás o próprio Gago que, já como ministro da ciência e da tecnologia – promotor de largo fôlego das Tecnologias da Informação como tecnologias do conhecimento, através das iniciativas do «Livro Verde para a Sociedade da Informação em Portugal» que deu forma e impulsão a programas emblemáticos como «Internet nas Escolas», «Espaços Internet» ou a certificação de competências básicas em Tecnologias da Informação –, o constatou ao comentar o advento dos computadores nas salas de aulas, alertando desde logo para o «non-sense» de crer que este por si só poderia simular e substituir a experimentação prática. E de facto, a nova cultura de «power-points» e informações modeladas em imagens bidimensionais, disposição que entretanto se vulgarizou na salas de aulas de hoje, como o próprio admitia então, de pouco mais serviria do que para reiterar o mesmo modelo estático de aprendizagem, em quase tudo contrário à experimentação científica[9]. Foi assim com inteligência irónica que meditou o paradigma da Aldeia dos Macacos, ou seja, de um acrítico «macaquear sinais exteriores da cultura e da prática científica (…) sem lhes penetrar o sentido nem proceder à aprendizagem sistemática dessas práticas (…)»[10].
Foi assim no conhecimento pleno do défice de cultura científica na cultura geral da população portuguesa aferido anos mais tarde (1996), através de um amplo inquérito realizado sob a condução do Observatório das Ciências e das Tecnologias, que Mariano Gago vislumbrou a necessidade de impulsionar as redes de conhecimento que proporcionassem um melhor «entendimento público da ciência»: o programa Ciência Viva foi o resultado desse esforço concertado para a criação de polos de conhecimento científico de base territorial local e regional, organizados em rede. Foi esse programa igualmente coerente com o seu desígnio de conferir à ciência portuguesa uma escala global, um lugar nos grandes consórcios europeus e mundiais, estratégia que teve um momento de grande significado político na Cimeira de Lisboa em março de 2000, e que o fariam afirmar: «On a réussi à ce que la science et la technologie prennent pour la première fois une place privilégiée dans l’agenda politique…»[11] .
Graças a este entendimento Mariano Gago pôde desenvolver um conceito político de administração da ciência, ora virado para a cidadania e para a aproximação dos discursos científicos aos saberes comuns (um olhar antropológico em sentido próprio), por um lado, e de ecumenismo transnacional na contribuição que sempre ofereceu à confederação das ciências europeias em organizações formais, por outro. Foi também claro e assertivo na maneira como defendeu a obrigação de um «questionamento da própria comunidade científica que a si mesma se deve comparar à de outros países e exigir – em paralelo como o reforço dos meios postos à sua disposição – uma crítica pública muito mais exigente do que no passado da qualidade da sua produção»[12].
Se fosse vivo, Mariano Gago celebraria no dia 16 de maio 68 anos de idade. Passado um ano sobre o seu falecimento, não podíamos deixar de evocar o legado do homem de ação inspirado que foi, tendo deixado a sua marca nos últimos 30 anos da ciência que se fez em Portugal. Fazedor de pontes entre cientistas («romper o isolamento»), educadores («renovar a educação científica»), entre países («internacionalizar a ciência portuguesa e europeia»), e por fim, entre as formas do saber («criar cultura científica»). Podemos afirmar que um caminho foi efetivamente cumprido nas direções que apontou. Peter Tindemans que o conhecera de perto recorda-o[13] como alguém a quem animava em primeiro lugar a própria ideia de movimento (social e cultural) para o progresso humano. Até na forma de estar na política, Mariano Gago foi físico – e o mesmo é dizer, antropólogo, considerando-se a antropologia como a física das ciências humanas -, homem do concreto, reverenciou acima de tudo a possibilidade de contribuir para a aceleração da transformação da matéria – a do conhecimento como a da realidade social.
Maio, 2016
[1] Tradução livre de Gago, José Mariano (1991): L’avenir de l’enseignement scientifique général ; in Impact : Science et Société, nº 164, UNESCO ; p. 307-312.
[2] Idem, p. 308.
[3] Gago, José Mariano (1986) : Discurso proferido no acto de tomada de posse como presidente da JNICT» ; ex. polic., Processo PT/FCT/JNICT/DSGA-RPE-SP/001/0031/132, Arquivo de Ciência e Tecnologia, Fundação para a Ciência e a Tecnologia; p. 1.
[4] Idem, p.5.
[5] Este Núcleo foi criado por Despacho Interno de 17/6/1986, na dependência direta do presidente da Junta, tendo como fins «incrementar a divulgação científica e técnica e a sensibilização [pública] à ciência», a «edição e difusão de um boletim de divulgação científica e técnica», ações de «estímulo do jornalismo científico», o «lançamento futuro de museus vivos da atividade científica contemporânea» e a «formação de animadores científicos», a «problemática da divulgação científica» num todo comprometido com a comunicação social. Não por acaso, o Núcleo foi constituído com três jornalistas, o último dos quais designer gráfico e fotógrafo, respetivamente José Vítor Malheiros, Rui Martins e Jorge Lima Alves, para além do próprio Mariano Gago. Ver: Despacho Interno nº 9/86 de 17 de junho, processo individual de José Mariano Rebelo Pires Gago, PT/FCT/JNICT/DSGA-RPE-SP/001/0031/132, Arquivo de Ciência e Tecnologia, Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
[6] Gago, José Mariano (1986) : Discurso… , p. 7.
[7] Idem, id.
[8] Enfileirada com esta foi a sua proposição para a conceção de um «Exploratório» que fosse um «museu vivo das ciências contemporâneas». Nesse Exploratório bem como na instituição do referido «Núcleo de divulgação científica e técnica» podemos situar a génese do que viria a ser a rede nacional de centros Ciência Viva. Ver Gago, José Mariano (1986): Discurso…, p. 8.
[9] Gago, José Mariano (1991): L’avenir de l’enseignement scientifique général; in Impact : Science et Société, nº 164, UNESCO, p. 307 : «L’acceptation de l’ordinateur cache la nécessité de développer fondamentalement le rôle des activités expérimentales dans l’enseignement scientifique…».
[10] Gago, José Mariano (1990): Hardware, software, experimentação; Manifesto para a Ciência em Portugal – Ensaio; Lisboa, Gradiva. P. 125.
[11] SA (2005): Portrait. Le chercheur et la société ou la double vie d’un physicien-citoyen. Ver referência completa na bibliografia final.
[12] Gago, José Mariano (1986) : Discurso…; procº PT/FCT/JNICT/DSGA-RPE-SP/001/0031/132, ACT – FCT.
[13] Ver: Tindemans, Peter (2015): In memory of José Mariano Gago; Euroscience Newsletter post de 20/4, disponível em: http://www.euroscience.org/news/in-memory-of-jose-mariano-gago/
Fontes consultadas
Bibliografia
Gago, José Mariano (1990): «Manifesto para a ciência em Portugal»; Lisboa, Gradiva. (disponível para consulta na Biblioteca da FCT)
Oliveira, Luísa Tiago de (2015): Entrevista “José Mariano Gago, estudante e dirigente associativo”. In Análise Social, 215, l (2.º), pp. 407-442. Pdf disponível em:
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/AS_215_ent.pdf
S/A. (2005): «Portrait. Le chercheur et la société ou la double vie d’un physicien-citoyen», RDT Info – Magazine de la Recherche Européenne, nº 44, Février 2005. Disponível em :
https://ec.europa.eu/research/rtdinfo/44/print_article_2023_fr.html
Documentos de arquivo (disponível para consulta no ACT)
Arquivo José Mariano Rebelo Pires Gago: PT/FCT/MG.
Processo individual de José Mariano Rebelo Pires Gago, PT/FCT/JNICT/DSGA-RPE-SP/001/0031/132.