Maria José Moura, uma mulher de visão

 

Paula Seguro de Carvalho
Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

 

A 13 de março de 1937, na cidade de Évora, nascia Maria José Sabino Moura, aquela que viria a ser conhecida como a ‘mãe’ da Rede de Bibliotecas Públicas. Apesar do seu contributo ter sido fundamental nesta área, o título é redutor e fica muito aquém de tudo o que Maria José Moura fez pelas bibliotecas e pela profissão.

Desde cedo que se dedicou à causa das bibliotecas com uma modernidade e visão de futuro pouco comum para a época. Em 1972 numa entrevista à RTP 1, Maria José Moura afirmava que “a biblioteca nos dias de hoje desempenha um papel muito diferente do que tradicionalmente se concebia que pudesse ter. Hoje não é, de facto, a biblioteca um depósito de livros, não é um edifício, não é uma coleção de espécies é sim um serviço público” (Arquivos RTP,1972).

Quem a conhecia bem reconheci-lhe as qualidades de amiga: “Assumia as minhas lutas, lutando ela própria contra os moinhos de vento do meu destino, como se tivesse sido responsável por eles, defendendo-me de tudo aquilo que achava ser injusto e oferecendo-me, até ao fim, uma imensa e abnegada proteção e amizade” (Roque, 2018).

Era uma mulher singular com uma “… contagiante capacidade de trabalho, que estendia a todos os que a rodeavam” (Roque, 2018) e que viveu de forma intensa e dedicada às causas que defendia.

Licenciada em Ciências Históricas e Filosóficas, embora se sentisse tentada pelo curso de museologia, acabou por fazer o Curso de Bibliotecário Arquivista, na Universidade de Coimbra. Numa época em que as instituições não reconheciam a importância da formação, recorda Maria José Moura “Éramos apenas 5, naquelas penosas deslocações semanais, e que nem sequer pelo serviço me estavam autorizadas… Felizmente aí encontrei o meu grande mestre, Jorge Peixoto, que tudo me ensinou” (Moura, 2017).

Foi diretora dos Serviços de Documentação da Universidade de Lisboa até 1987 e diretora do Serviço de Bibliotecas do Instituto Português do Livro e da Biblioteca tendo elaborado e dirigido o Programa da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas até 2006. Este programa foi de extrema importância numa altura que Portugal apresentava muitas carências de oferta cultural à população, como testemunha Francisco José Viegas em entrevista à RTP: “A criação da rede de leitura pública em Portugal é, sem dúvida nenhuma, a grande revolução cultural dos anos 80” (Trigo, 1999).

Henrique Barreto Nunes vem reforçar esta ideia ao afirmar que “desde o início foi Maria José Moura o verdadeiro motor desta autêntica revolução, quase silenciosa, que em poucos anos alterou profundamente a situação e o papel das bibliotecas públicas em Portugal” (Nunes,1996).

Na visão singular de Maria José Moura, na biblioteca ideal “as pessoas conseguem encontrar respostas para as suas necessidades, sejam elas de ordem pessoal” ou profissional. “As bibliotecas têm de se adaptar àquilo que lhes é pedido e não ver nisso uma desconsideração. Não se sentir diminuída. Pelo contrário” (LUSA, 2016).

O seu empenho na construção e desenvolvimento deste projeto assentava na conceção de que “a biblioteca pública é uma janela aberta para o mundo … é uma forma de democratizar a cultura, de democratizar o saber, de democratizar o acesso à informação” (Trigo, 1999).

O trabalho que desenvolveu com o projeto da rede de leitura pública valeu-lhe o Prémio Internacional do Livro, por proposta da International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA). Com a atribuição deste galardão “o Comité pretendeu reconhecer o trabalho desta bibliotecária pela causa do livro, da leitura e da literacia e ainda pelo lançamento em Portugal do programa das bibliotecas públicas” (Trigo, 1999).

Contudo, Maria José Moura não esteve apenas na génese e coordenação deste projeto. Ao longo de 20 anos “acompanhou sempre, visitando as bibliotecas, encorajando os jovens bibliotecários, estimulando encontros e projetos” (Bibliotecas Vale do Cávado [BVC], 2018).

Na sua longa e sempre ativa vida lutou para “criar profissionais competentes, empenhados e socialmente comprometidos” (Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação – BAD, 2021). Para Maria José Moura “O bibliotecário é um mediador. Antes não era. Não sabia quem eram os leitores e utilizadores. Uma das coisas mais importantes para o bibliotecário poder trabalhar é o diálogo e a proximidade com as pessoas que lá vão. E é muito exigente, porque há leitores com interesses muito diversificados” (Lusa, 2016).

A criação da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, em 1973, da qual Maria José Moura foi umas das fundadoras e presidente, constituiu um marco importante na sua luta pela dignificação da profissão. O resultado foi a inclusão, por parte da Administração Pública, da profissão na lista das profissões especiais: “fê-lo com a sua persistência, criando lobby, massacrando, sem tréguas” (BAD, 2021). Ao longo dos anos assumiu outros cargos na Associação tal como Presidente da Mesa da Assembleia-Geral. Após ter abandonado a vida ativa, tornou-se Associada Honorária da BAD, continuando a participar nas atividades desenvolvidas pela associação sempre que lhe foi possível.

Durante a sua atividade associativa, uma das suas preocupações foi a garantia da manutenção da qualidade científica e editorial dos Cadernos BAD, reconhecendo que “apesar das dificuldades estruturais … investimos muito esforço no sector editorial, porque julgamos que, depois das acções de formação, ele é um domínio a privilegiar face não só às necessidades prementes de informação e actualização técnica, mas também como fermento de um futuro que tem que começar a construir-se hoje, na corresponsabilização e na solidariedade” (Moura, 1983).

No final dos anos 80, Maria José Moura leva a cabo um projeto que, apesar de discreto em termos de opinião pública, terá sido tão ambicioso como o da Leitura pública. Torna-se Coordenadora Geral do Projeto do Inventário do Património Cultural Móvel, o qual abrangia material de Biblioteca, Arquivo ou Museu numa visão globalizante que não fazia separação entre os três ramos de atividade do Património Nacional (BAD, 2021).

Em simultâneo foi Delegada Nacional do Programa Geral de Informação da UNESCO, Vice‐Presidente do Conselho Superior de Bibliotecas, responsável pelo National Focal Point – Telematic for Libraries e membro do Information Society Forum (Bruxelas).

Em 1987 no âmbito do Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia, foi a investigadora principal de um projeto proposto e executado pela BAD denominado Estudo Comparativo da Situação das Estruturas e das Políticas de Informação em Portugal e nos outros Países da CEE (Arquivo da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1987).

Em 1994 é-lhe atribuída uma bolsa Fulbright integrada no American Cultural Council Fellowship Program, como especialista na área de Biblioteca, cujo projeto tinha por objetivo a visita a bibliotecas públicas americanas (Arquivo da Comissão Fulbright, 1994).

No mesmo ano recebeu, das mãos do Presidente Mário Soares, a condecoração da Ordem do Mérito, pelo reconhecimento do seu papel no desenvolvimento cultural e social do país.

Mas esse reconhecimento assume um especial relevo quando vem das palavras sentidas de colegas de profissão como é o caso de Henrique Barreto Nunes quando afirmou, em 1996, que “profissionalmente, tudo isto lhe devo, bem como, pessoalmente o conselho certo ou a palavra amiga, generosa e solidária, particularmente em momentos difíceis da minha actividade como bibliotecário”. Rui Viana em 2018 afirmava: “Convivi perto de trinta anos com a Dr.ª Maria José Moura de quem guardo a mais grata recordação não só pela excelente profissional que sempre foi mas, também, pela amizade que sempre nos abraçou”.

Foi docente no Curso de Especialização em Ciências Documentais das Universidades de Lisboa e Coimbra e em Cursos de Técnicos Profissionais da BAD.

Maria José Moura lutou por uma formação moderna e obrigatória para quem trabalhava nas bibliotecas e nos arquivos, contribuindo para a renovação do curso de ciências documentais, mas também se bateu pela necessidade de formação específica de técnicos intermédios (BAD, 2021).

Sempre ativa na comunidade, Maria José Moura presidiu e integrou a comissão organizadora de diversas conferências nacionais e internacionais do sector e foi convidada a apresentar comunicações em muitas outras.

Foi convidada a integrar o Conselho Nacional da Cultura – Secção do Livro e das Bibliotecas, fez parte da Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura e pertenceu aos Comités Permanentes da IFLA Public Libraries e Library Buildings and Equipment.

O reconhecimento do seu trabalho materializou-se na criação, em 2014, do Prémio Boas Práticas em Bibliotecas Públicas Municipais instituído pela Direção-Geral do Livros, dos Arquivos e das Bibliotecas. O objetivo é premiar anualmente serviços ou projetos inovadores e de grande impacto na comunidade, desenvolvidos pelas bibliotecas públicas municipais portuguesas.

Em 2021 a Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação instituiu o Prémio BAD Maria José Moura. Este prémio possui duas categorias: Jovem Profissional e Reconhecimento Profissional. A nomeação para o prémio é feita exclusivamente por associados da BAD e contempla profissionais no exercício que tenham desenvolvido serviços relevantes, de impacto social na comunidade ou que tenham contribuído de forma significativa para o desenvolvimento da profissão, entre outros.

Era vista por alguns colegas como uma “mulher livre, de sorriso largo e energia radiosa, e uma lutadora pelas causas do livro, da leitura e das bibliotecas e pelo direito dos cidadãos ao acesso aberto à cultura, à informação, à educação ao longo da vida e à ocupação útil dos tempos livres” (BVC, 2018).

Mas, nas palavras de Ana Paula Gordo, Maria José Moura era por vezes uma mulher de difícil trato, “muito motivado pela sua excessiva teimosia e obstinação o que tornava por vezes difícil trabalhar com ela. A par disso era de uma amizade e solidariedade sem limites”.

Certamente que foram estas características que lhe permitiram chegar aonde chegou, assim “esqueçamos o que por vezes nos separou e lembremos essa força da natureza que sempre fez o melhor que soube e pode pela profissão” (BAD, 2021).

Maria José Moura deixou-nos aos 81 anos no dia 2 de novembro de 2018 e muito ficou certamente por dizer sobre o seu percurso. Mais do que elencar o seu currículo pretendeu-se mostrar quem foi esta Mulher e o impacto que ela teve ao seu redor.

Março de 2022

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Referências Bibliográficas

Arquivo da Comissão Cultural Luso-Americana – Comissão Fulbright (1994). Maria José Sabino de Moura. (PT/FULB/FULB/023/0015/399), Arquivo de Ciência e Tecnologia, Lisboa, Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Arquivo da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. (PT/FCT/JNICT/DSPP-DGP/001/0646), Arquivo de Ciência e Tecnologia, Lisboa, Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Arquivos RTP (1972, novembro 30). Um Dia Com … Maria José Moura. [Episódio de programa de televisão]. In Um Dia Com. Lisboa. RTP1.

Associação Portuguesa BAD (2021, dezembro 07). Sessão Comemorativa do 48.º Aniversário da BAD – 2 parte [Vídeo]. Youtube.

Bibliotecas Vale do Cávado (2018). Maria José Moura (1937-2018): morreu a “Mãe” da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas. Notícias.

LUSA (2016, outubro 21). Portugueses têm de ser conquistados para uso das bibliotecas públicas. Observador .

Moura, M.J. (1983). Editorial. Cadernos BAD. (1), 3-5.

Moura, M.J (2017, janeiro 20). Alguns apontamentos sobre 50 anos de profissão. Notícias BAD

Nunes, H.B. (1996, janeiro). Nota explicativa [Da biblioteca ao leitor]. Homenagem ao Henrique Barreto Nunes.

Roque, MI (2018, novembro 02). Maria José Moura (1937-2018). A.Muse.Arte.

Trigo, VM (Apresentador) (1999, abril 28). Bibliotecas Públicas: A revolução silenciosa – parte I. [Episódio de programa de televisão]. In Sinais do Tempo. Lisboa. RTP1.

Viana, R. (2018, novembro 15). As Bibliotecas, Maria José Moura e a Rede de Leitura Pública. Correio do Minho.

Fonte das Imagens

Imagem 1: Arquivos RTP

Imagem 2 a 6: Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação – BAD.