Ciência e Política: Luís Ernani Dias Amado, um homem entre dois mundos

 

Ana Filipa Candeias
Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

 

Concluído que foi o tratamento e a integração nos inventários do ACT do acervo de Luís Ernani Dias Amado, retraçamos o perfil biográfico do investigador português que foi também político, lutador antifascista, democrata republicano e mação, cuja vida devotou à investigação científica e à militância civil, numa época particularmente crítica da história contemporânea portuguesa, dos anos 30 ao pós-25 de abril.

 

Luís Ernani Dias Amado nasceu em 19 de janeiro de 1901, em Lisboa, na Freguesia de São Paulo. Frequentou o Liceu Pedro Nunes onde se ligou de amizade com Bento de Jesus Caraça que virá a ser outro notável cientista e militante democrata (nascido no mesmo ano). Matriculou-se na Faculdade de Medicina em 7 de outubro de 1918, embora, pelo registo da caderneta escolar que perdurou quase intacta, só no ano lectivo seguinte tenha efectivamente iniciado os estudos médicos. Consta que entrado nesta escola de ensino médico logo se alistou em brigadas pela defesa da República, contra a ameaça realista que no ano de 1919 eclodira no Porto. Na Faculdade de Medicina de Lisboa, Dias Amado foi aluno de Egas Moniz (na disciplina de neurologia), de Aníbal Bettencourt, Sobral Cid, Mark Athias, Sílvio Rebelo, Roberto Chaves e Celestino da Costa, alguns dos mais conceituados médicos da escola médica de Lisboa, conhecida como «Geração de 1911».

Filho de Capitolina Monteiro e de Luís Dias Amado, este último oriundo do Algarve e formado farmacêutico em Coimbra, depois estabelecido em Lisboa, com loja própria na Rua de São Paulo – na Farmácia Universal (encerrada há poucos anos) -, Luís Ernani Dias Amado teve dois filhos de um primeiro casamento: Luís Osvaldo Dias Amado e Luísa Irene Dias Amado. Ambos educados no espírito laico e republicano do pai, foram militantes do Movimento de Unidade Democrática Juvenil desde 1946. O primeiro foi igualmente médico (1928-2000) e professor destacado da Faculdade de Medicina de Lisboa. Irene Dias Amado formou-se em Letras. Dela são as palavras do poema «Cantemos o novo dia» que o compositor Fernando Lopes Graça pôs em música e integrou no ciclo de «Canções heróicas» (1946-1970): «Olhai que vamos passar, Nosso canto é de verdade; Vinde connosco lutar, Nós somos a liberdade (…)».

Em 1942, Dias Amado obteve o doutoramento em medicina com a dissertação: «Complexos neuro-epiteliais e neuro-epitelioides», relativa ao estudo do Sistema nervoso autónomo; publica pela Cosmos, do seu compadre Bento de Jesus Caraça, o volume «Organização da Matéria viva» (nº 20, Secção Ciências e Técnicas), a que se seguirá em 1944, o volume «A organização fundamental dos seres vivos» (nº 62, Secção Ciências e Técnicas/Ciências Biológicas). Pela mesma época, publica as suas investigações em diversos periódicos especializados, nomeadamente, nas recolhas de «Trabalhos do Instituto de Histologia e Embriologia» ou nas «Archives Portugaises des Sciences Biologiques».

De acordo com uma espécie de “diário de bordo” redigido num singelo caderno pautado que deixou incompleto, ficamos a saber que Luís Ernani Dias Amado fez parte de numerosas organizações cívicas de cariz republicano: em primeiro lugar, o Grémio Lusitano/Grande Oriente Lusitano a que adere em 1928, instituição que protegeu toda a vida e contribuiu para perpetuar na clandestinidade, durante a ditadura, tendo chegado a Grão-mestre, entre 1975 e 1981, ano da sua morte, A Voz do Operário, o Centro Escolar Republicano Almirante Reis, a Escola Oficina nº 1, a Liga Portuguesa dos Direitos do Homem, de foi presidente em finais dos anos 50, a Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal (accionista), a Liga para a Protecção da Natureza, a Prelo Editora, o jornal República. Quanto a organizações científicas de que foi membro, Dias Amado enumera as seguintes: Sociedade de Língua Portuguesa, Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Sociedade Portuguesa de Bioquímica, Sociedade de Ciências Médicas, Sociedade Portuguesa de Anatomia, Association des Anatomistes, Sociedade Portuguesa de Medicina Laboratorial (presidente), Sociedade Portuguesa de Biologia.

De entre outros documentos raros incorporados no ACT destacamos o libreto da revista académica “Lisboa Médica” datado de 1924, relativo ao período em que Luís Ernani Dias Amado frequentou o 5º ano de medicina, manuscrito de uma peça em dois atos com o subtítulo: «Revista dos Quintanistas de Medicina». Os ditos “quintanistas” são registados como segue: Luís Dias Amado, Luiz Leite, Manoel Pires, Nicolau Bettencourt, Toscano Rico e Jacinto Vargas Moniz.

Outra peça curiosa, conservada no ACT, é o Caderno da disciplina de Geografia do Liceu Pedro Nunes, com ilustrações e gráficos sobre Geografia de Portugal, documento datado de 1914-15. O cuidado revelado na sua elaboração revela-nos uma têmpera curiosa, metódica e criativa que se afirmará, alguns anos depois, com grande humor, no preâmbulo redigido na «memória» que, já finalista de medicina, Dias Amado irá apresentar à Faculdade de Medicina de Lisboa (1925) como prova de dissertação para obtenção do grau de licenciado, subordinada ao tema «Contribuição para o estudo das Células de Nicolas». No conjunto, inclui-se ainda um precioso caderno de desenho do «Curso do 1º ano» da FML/Instituto de Histologia e Embriologia e diversas coleções de desenhos muito belos realizados a partir da observação de células e tecidos através dos quais descobrimos em Dias Amado um notável desenhador. O confronto com estes trabalhos permite-nos considerar a variedade de técnicas de reprodução do observado, tendo em vista a compreensão, a interpretação e por último, a produção de conhecimento a partir da imagem visual nas ciências médicas.

A par da documentação de arquivo também uma parte da biblioteca de Dias Amado foi integrada nas coleções da FCT: através da sua produção bibliográfica, podemos reconhecer os temas de especialidade que predominantemente trabalhou, a anatomia, a histologia, a endocrinologia, a bioquímica. A sua produção científica recobre um período de cerca de 60 anos e consubstancia-se nas habituais «separatas» de periódicos científicos, com comunicações decorrentes de investigações realizadas.

Mação e ativista dos direitos civis, primeiro assistente do Instituto de Histologia e Embriologia da FML, desde 1943, Dias Amado foi demitido compulsivamente, ou «desligado do serviço» em 18 de junho de 1947 na sequência da «purga» de intelectuais, cientistas e universitários contrários ao regime traduzida em Resolução do Conselho de Ministros com a mesma data. Na mesma ocasião foi destituído das funções que igualmente desempenhava como Chefe de Serviços de Análises Clínicas dos Hospitais Civis de Lisboa.

Detido por diversas vezes para «averiguações», a primeira das quais em 1948, não desistiu de lutar por um ideal de nação livre e democrática. Foi preso novamente em 1961 e ainda  em 1963, por ter subscrito o «Programa para a democratização da República», pela lista de Opositores ao regime. Levado a julgamento, em outubro de 1964, será absolvido. Dos processos conservados no ACT destacamos dois recortes do jornal «República» relativos ao “julgamento político” de Dias Amado no Tribunal Plenário da Boa-Hora, em Lisboa, «acusado de actividades subversivas» (sic) e à leitura da sentença, «após cerca de um ano de detenção». Os recortes em questão, com data de 23 e 28 de outubro de 1964 foram rasurados pelos «Serviços de Censura», antes de receberem o visto de “autorizado com cortes”: a notícia tratara de obnubilar o perfil biográfico de cientista, médico e universitário reduzindo-o a uma anónima insignificância ontológica e social. Num dos artigos ficamos a saber que entre as testemunhas de defesa do «réu» se encontraram Celestino Costa e Mário de Azevedo Gomes. Obstinado, Dias Amado não deixará de se comprometer, pouco depois, com uma nova causa liberal: a das eleições de 1965 e de 1969, integrando as listas da Oposição (pela «Acção Democrato-Social»).

Como demos notícia anteriormente, o ACT congratula-se com a conclusão do tratamento do Arquivo Luís Ernani Dias Amado, tornado possível pela doação da filha Luísa Irene Dias Amado e agora disponibilizado para consulta pública: a sua produção científica, doravante integrada na Biblioteca da FCT, a documentação de arquivo, disponível nos seus suportes originais e em formato digital, através do catálogo em linha do Arquivo de Ciência e Tecnologia. Embora lacunar e de pequena dimensão, o Arquivo Dias Amado contem peças de grande riqueza e originalidade, como vimos, permitindo-nos viajar através dos dois grandes domínios em que se movimentou, a ciência e a ação política, sem deixar de aclarar aspetos da vida pessoal e familiar desta personalidade rica e enérgica de investigador e combatente contra a ditadura.

 

Fevereiro, 2018

 

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Fontes consultadas

Documentos de arquivo (disponível para consulta no ACT)

Arquivo Luís Ernani Dias Amado: PT/FCT/LEDA.

 

Sites

https://toponimialisboa.wordpress.com/2017/07/24/a-rua-do-prof-dias-amado-que-reanima-a-liga-portuguesa-dos-direitos-do-homem/
Acedido em dezembro de 2017

http://arepublicano.blogspot.pt/2013/01/luis-ernani-dias-amado-parte-iii.html
Acedido em janeiro de 2018

http://www.fmsoares.pt/iniciativas/iniciativa?id=001147
Acedido em janeiro de 2018

http://casacomum.org/cc/pesqArquivo.php?termo=Dias+Amado
Acedido em dezembro de 2017 e janeiro de 2018