A propósito do Dia Internacional das Florestas…Lembrança e problemática da Festa da Árvore

 

Ana Filipa Candeias com apoio de Carina Almeida
Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

 

Com a chegada da Primavera, celebra-se hoje, dia 21 de março, o Dia Internacional das Florestas, dia proclamado pela ONU desde 2012 como de especial relevância para a sensibilização da importância da preservação dos ecossistemas florestais para a sustentabilidade da vida.

Em Portugal, a celebração do Dia da Floresta e da Árvore tem uma crónica interessante a qual invoca o episódio distante da iniciativa régia de plantação do Pinhal de Leiria, por D. Dinis, ato fundador da silvicultura portuguesa entendida como disciplina técnica aplicada à resolução de problemas ambientais e à exploração económica da Floresta.

Iniciativa veneranda com particular expressão nos primeiros anos da República, o Dia da Árvore teve os seus defensores ainda antes da República ganha, mas foi consensualmente com o novo regime que esta celebração ganhou maior protagonismo. A este propósito relembramos o artigo de Victor Ribeiro na revista Serões, de que reproduzimos as ilustrações do presente artigo, em que este autor insistia na gravidade do «problema florestal (…) num paiz em que 44% do território se acha no estado bravio de charneca ou de areias de costa, onde as terras (…) se apresentam escalvadas e nuas»[1]. No mesmo alinhamento de ideias e pela mesma época, vinha Ruy Ferro Mayer defender idêntica estratégia de «arborização de Portugal» (sic), nas páginas da mesma revista (nº 70, abril de 1911).

Nos primeiros tempos da República, estas e outras iniciativas para a valorização pública e colectiva do bem que representam as árvores e as florestas, foram recrudescendo não sem antes sofrerem uma reciclagem na ideologia republicana[2], através de organizações como a «Liga Nacional de Instrucção», respeitável agremiação para-maçónica que promoveu nos alvores do século XX, a referida Festa da Árvore, junto das escolas primárias do país (com especial enfase em Lisboa e arredores). Logo erigida a «culto patriótico e alevantado»[3], diligência visando a criação e o reforço de uma opinião pública favorável à causa ecológica, avant-la-lettre, à defesa da natureza, através da árvore e da floresta, deu pouco depois origem a um Decreto (nº 682/1914) do Ministério do Fomento, onde se achou plasmado um «Regulamento de Proteção das árvores nacionais» cuja modernidade radicava numa evidente “patrimonialização” da árvore, com a possibilidade de seu «arrolamento e catalogação», sua inscrição como bem de interesse público nacional à semelhança de outros tesouros, consagrando o princípio do inventário como princípio de conhecimento público. Veio a mesma disposição validar a acção da «Associação Protectora da Árvore» como entidade parceira da Direção dos Serviços Florestais, secção da Direcção Geral da Agricultura, na tarefa de gestão, difusão do conhecimento e policiamento das florestas.

Tal não obstou a que a floresta se desflorestasse cada vez mais, a braços com o abandono a que as populações rurais a iam votando. A Primeira Guerra Mundial e a profunda crise económica em que o país se achou mergulhado remeteram para os fundos a causa da árvore e da floresta que, no entanto, não deixou de influenciar as mentes de decisores públicos.

Em 1918, com a criação do Ministério da Agricultura foi recriada sob a sua dependência uma Direcção dos Serviços Florestais e Aquícolas, à qual foi confiada uma extensa bateria de funções subdivididas em duas divisões complementares: a divisão de «exploração das matas nacionais» e a divisão dos serviços de «arborização das serras, dunas e aquícolas»[4], a estas cabendo ainda a fiscalização, o planeamento com a elaboração de planos de arborização e por fim, a investigação e o «fomento». No mesmo diploma, foram criadas as «circunscrições florestais» pelas quais se dividiu o território em oito áreas, bem como, entre outras, as «Conferências florestais» a par das agronómicas e veterinárias, que deveriam servir de fóruns para apreciação e discussão de temas de interesse dentro das respectivas especialidades, dando-se ainda como missão, a organização de «concursos e exposições» de produtos. O que tais celebrações e iniciativas legislativas não pareciam lograr era o combate eficaz da desertificação dos campos e os êxodos rurais que impossibilitariam qualquer esforço sério de uma ciência florestal racional que não o era, não por falta de homens de acção e saber, mas por um pertinaz preconceito e desconhecimento da sua importância, o que levaria o antigo Deputado à Assembleia Constituinte de 1911, José Nunes da Mata a publicar um libelo denunciador, «A guerra à Árvore feita pela própria lei e a sua nefasta influência na agricultura e turismo», em 1921, sinal de que as políticas florestais nacionais estavam ainda bem longe de se acordar no texto e na realidade.

Quanto à Festa da Árvore, vemos que ela constituiu ou pretendeu-se constituir em momento de celebração de uma estética social que utopicamente representava a árvore e a floresta como símbolos progressistas, no breve período sequente à instauração da República, panaceia contra os males e atrasos do país, por um lado, contribuindo para consolidar entre as populações urbanas sobretudo, que não as rurais, o «Mito da “floresta natural”», como lhe chama António Fabião no seu artigo «Os mitos urbanos da floresta: a “floresta natural”»[5].

Com o advento da ditadura e a instauração de um Estado corporativo, procedeu-se à refundição dos órgãos criados na I República em termos da nova gramática corporativa. O Ministério da Agricultura foi reformado, em 1936, sendo que só em 1938 é publicada a «Lei do Povoamento Florestal», com a proposição de florestação dos baldios, serras e dunas[6]. Entretanto, substituída por outras mais historicistas e imperiais celebrações, a Festa da Árvore fora varrida dos anais das festividades nacionais. A sua pequena história ficou mais tarde registada em entrada própria da «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», onde o anónimo articulista (Mário de Azevedo Gomes?) tivera o cuidado de abrir, no extenso verbete dedicado à «Árvore», uma subsecção pedagógica intitulada «Festa da Árvore». Pois que de pedagogia se tratara. Evocava nele o significado que o Dia chegara a alcançar em Portugal nos primeiros anos da República, terminando por afirmar: «Posteriormente, a festa da Árvore, realizada aqui e acolá, sem unidade de pensamento nem de acção quasi que desapareceu» (sic). Sucederam-se pois, de forma irregular, novas reformas, novas leis, tendentes à protecção da árvore e da floresta, que pretenderam refundar ou modernizar a silvicultura racional, que se ambicionava de efeitos multiplicadores na geração de riqueza comum, embora mais uma vez de difícil execução prática, dado o desigual entendimento da ideologia ecológica e ambiental, da importância e significado da arborização. A ideia de um país racionalmente gerido e florestado tardava pois em enraizar-se de maneira consequente na praxis política como na opinião pública, a braços com outras mais prementes urgências.

Este transcurso fez-se sem prejuízo da afirmação crescente da especificidade científica e disciplinar dos estudos florestais, entendidos como domínio autónomo das «ciências agronómicas», porquanto as diversas leis publicadas sempre reafirmaram a importância da investigação na área da floresta e a reforma da Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas realizada em 1956, já no quadro informado pelo primeiro «Plano de Fomento»[7], não deixou de, uma vez mais, sublinhar a sua importância, consagrando-a na criação de um «Centro de investigações florestais» inscrito ainda no âmbito daquela Direcção Geral, ao qual competiria coordenar a «atividade científica dos estabelecimentos de investigação e experimentação» no domínio das florestas, ainda antes da criação, na década seguinte, de um «Centro de Estudos Florestais anexo ao Instituto Superior de Agronomia», em 1964, primeiramente com apoio do Instituto para a Alta Cultura e, mais tarde, a partir de 1976, do Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC).

Na década de 70, mais uma vez na sequência de grandes incêndios ocorridos na década anterior, publicou-se a primeira importante legislação sobre fogos florestais, não por acaso no contexto de celebração do «Ano Europeu da Conservação da Natureza» (1970), a que se seguiu, em 1972, a adoção oficial do Dia Mundial da Floresta. Coincidindo com o dia 21 de março, sem pompa excessiva e ainda cautelosamente enfatizando o seu pendor pedagógico ou escolar, eis que a Festa da Árvore ressurgia em Portugal, num contexto cultural (interno e externo) de valorização das temáticas ecológicas e ambientais que marcou a época e se prolongou pela década de 70 adentro, depois do 25 de abril, já no novo quadro democrático. A par de uma maior sensibilidade para a causa das árvores e da floresta, na educação e na cultura cívica, tomou-se consciência do grave problema dos fogos florestais. Um pouco mais tarde, a importância institucional do Dia da Floresta e da Árvore incentivou mesmo a criação de uma «Comissão Coordenadora das Comemorações do Dia Mundial da Floresta» entidade com carácter permanente a que caberia a gestão das iniciativas a realizar ao abrigo dos Dias Mundiais da Floresta. Reconhecia-se então que «Portugal, país florestal por excelência, necessita de uma mentalidade silvícola generalizada»[8]. Seguiu-se um «Programa de Acção Florestal» (1986), apoiado em fundos da Comunidade Económica Europeia. A criação de uma Sociedade Portuguesa de Ciências Florestais entretanto formalizada (1984) como secção da Sociedade Portuguesa de Ciências Agrárias, veio institucionalizar o reconhecimento das profissões associadas ao conhecimento da floresta. Desta Sociedade partiu a iniciativa de um «Iº Congresso Nacional Florestal», realizado em Lisboa, com o apoio da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, JNICT, do qual saiu um conjunto de importantes «Conclusões e Recomendações».

Pouco depois, em 1987, foi criado um organismo de âmbito nacional, a Comissão Nacional Especializada para os Fogos Florestais, CNEFF. Até à sua extinção em 2003, a CNEFF promoveu diversas acções tendo sido parceira da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica na valorização da investigação e discussão pública dos problemas da floresta portuguesa, reconhecidos como «problema nacional». Uma dessas acções foi a realização de uma «Jornada de Investigação Científica aplicada a incêndios florestais», em Coimbra, em 1995, a que se seguiu, já sob a égide do Ministério da Ciência e da Tecnologia, uma «Reunião sobre investigação científica e tecnológica aplicada a incêndios florestais» (LNEC, Lisboa, 25 de julho de 1996), da qual saiu um conjunto de conclusões e recomendações. Estas iniciativas foram enquadradas por protocolo estabelecido entre a JNICT e a CNEFF, em maio de 1993, que visou o lançamento de um Programa específico de «Investigação Aplicada a Incêndios Florestais» através do qual foram financiados 25 projectos especializados no estudo, na prevenção e no combate a incêndios florestais. A atividade do CNEFF e sua relação com a JNICT é documentada num conjunto de papéis depositados no Arquivo de Ciência e Tecnologia da FCT de grande interesse para a compreensão das problemáticas da investigação aplicada à gestão do património florestal. Através desta documentação é possível rever as propostas apresentadas no domínio do conhecimento, da prevenção, detecção precoce, combate aos incêndios florestais e reabilitação da Floresta.

A concluir esta rápida resenha sobre a história do Dia da Floresta e da Árvore terminaremos ainda lembrando a Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e para o Desenvolvimento, que se realizou no Rio de Janeiro, em 1992, no âmbito da qual foi aprovado o «Programa de Acção para o Desenvolvimento Sustentável – Acção 21». Neste, ganhava especial relevância a proposta para a criação e assinatura de uma «Convenção internacional de luta contra a desertificação» (1994), que viria igualmente a ser ratificada por Portugal no dia 1 de abril de 1996.

Como não podia deixar de ser, o hoje designado Dia Internacional das Florestas assume particular significado dada a amplitude dos problemas da gestão da floresta portuguesa cruamente reexpostos pelas últimas catástrofes dos incêndios de 2017, cerca de uma década após a promulgação de um novo «Código Florestal» (2009). Mas não só. A persistente desconsideração pelo património florestal ainda se verifica com a redução de áreas de paisagem protegida ou com a destruição das últimas áreas de matas existentes em zonas de forte pressão urbanística, situação a que nem a abundância de legislação nem a qualidade inegável dos estudos desenvolvidos em Portugal parece conseguir dar resposta.

 

Março, 2018

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1] Ver: Victor Ribeiro: «O culto da árvore»; in Serões, nº 72, volume XII, série 2, junho de 1911, pp. 403-409. Coleção Hemeroteca de Lisboa, disponível em:

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Seroes/1911/N072/N072_item1/P7.html

[2] Este movimento de reciclagem tem sido estudado por, entre outros: José Neiva Vieira (2010): «O culto da árvore e a I República», disponível na página do ICNF, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, em: http://www2.icnf.pt/portal/florestas/memoflo/cult-arvor-1a ; idem (2004): «Da festa da Árvore ao Dia Mundial da Floresta», Ministério da Agricultura Desenvolvimento Rural e Pescas/Direcção Geral das Florestas; Paulo Archer de Carvalho (2013): «Comemorações/Centenários/Romagens» e Joaquim Pintassilgo (idem): «Festa da Árvore», in M. F. Rollo (coord.), Dicionário Histórico da Iª República e do Republicanismo, vols. 1 e 2; Lisboa, Assembleia da República.

[3] Victor Ribeiro: Op. Cit.

[4] Decreto nº 4151 de 26 de abril de 1918, publicado no Diário do Governo, nº 88, I série, 2º suplemento.

[5] António Fabião (2007): «Os mitos urbanos da floresta: a “floresta natural”», in Ingenium, Revista da Ordem dos Engenheiros, nº 99, 2ª série, pp. 56-60.

[6] Lei nº 1971, de 15 de junho de 1938, publicada no Diário do Governo nº 136, I série.

[7] A Direção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas passara entretanto para a dependência do Ministério da Economia, conforme emanado do Decreto-Lei nº 40721, publicado no Diário do Governo nº 163, I série, em 2 de agosto de 1956.

[8] Portaria nº 438/84, publicada no DR nº 154/1984, Série I, em 5 de julho de 1984, da Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Administração Interna, da Educação, da Agricultura, Florestas e Alimentação, da Indústria e Energia, do Comércio e Turismo e da Qualidade de Vida.

 

Fontes consultadas

Bibliografia

– (sa.): «Árvore»; Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira; Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, sd.

Paulo Archer de Carvalho (2013): «Comemorações/Centenários/Romagens», in M. F. Rollo (coord.), Dicionário Histórico da Iª República e do Republicanismo, volume 1, Lisboa, Assembleia da República.

Joaquim Pintassilgo (2013): «Festa da Árvore», in M. F. Rollo (coord.), Op. Cit., volume 2; Lisboa, Assembleia da República.

João Craveiro, Marlucci Menezes, Helena Cruz (2012): «Responsabilidade e gestão do risco de incêndio nas proximidades das habitações e na orla florestal»; 2º Congresso Ibero-americano de Responsabilidade Social; Lisboa, ISEG, 25-27 de outubro.

José Neiva Vieira (2010): «O culto da árvore e a I República», Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas/Autoridade Nacional Florestal.

idem (2004): «Da festa da Árvore ao Dia Mundial da Floresta», Ministério da Agricultura Desenvolvimento Rural e Pescas/Direcção Geral das Florestas.

António Fabião (2007): «Os mitos urbanos da floresta: a “floresta natural”», in Ingenium, Revista da Ordem dos Engenheiros, nº 99, 2ª série, pp. 56-60.

Nicole Devy-Vareta, João Carlos Garcia (1989): «Bernardino Barros Gomes e a silvicultura no desenvolvimento da geografia portuguesa oitocentista»; Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nº 12, 5ª série, dezembro.

Victor Ribeiro (1911): «O culto da árvore»; in Serões, nº 72, volume XII, série 2, junho. Coleção Hemeroteca de Lisboa.

Ruy Ferro Mayer (1911): «A arborização de Portugal», in Serões, nº 70, volume XII, abril. Coleção Hemeroteca da Lisboa.

 

Documentos de arquivo (disponível para consulta no ACT)

«Sociedade Portuguesa de Ciências Florestais»; Fundo de Apoio à Comunidade Científica, 1999

Cota: A.01.09.3

«1.ªs Jornadas de Investigação Científica Aplicada a Incêndios Florestais», 1995-1996,

Código de referência: PT/FCT/JNICT/DSPP-DGP/002-004/0023

Protocolo JNICT/Comissão Nacional Especializada de Fogos Florestais, 1993/1994,

Código de referência: PT/FCT/JNICT/DSPP-DGP/002-004/0028

 

Legislação

Lei nº 53/2012 de 5 de Setembro (Regime jurídico da classificação de arvoredo de interesse público); Diário da República, 1ª série, nº 172.

Resolução do Conselho de Ministros nº 69/99, Diário da República nº 158, I série B, de 9 de julho.

Portaria nº 438/84, publicada no DR nº 154/1984, Série I, em 5 de julho de 1984, da Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Administração Interna, da Educação, da Agricultura, Florestas e Alimentação, da Indústria e Energia, do Comércio e Turismo e da Qualidade de Vida.

Decreto-Lei nº 40721, publicado no Diário do Governo nº 163, I série, em 2 de agosto de 1956.

Lei nº 1971, de 15 de junho de 1938, publicada no Diário do Governo nº 136, I série.

Decreto-lei nº 27207, Diário do Governo nº 269, I série, de 16 de novembro de 1936.

Decreto nº 4151 de 26 de abril de 1918, publicado no Diário do Governo, nº 88, I série, 2º suplemento.

Decreto nº 682/1914 do Ministério do Fomento, «Regulamento de Protecção das árvores nacionais», Diário do Governo nº 124, I série, de 23 de julho.