A Secção «A Vida Científica / Ciência» do Diário de Lisboa

 

Suzana Oliveira
Arquivo de Ciência e Tecnologia da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

 

A página científica «Vida Científica / Ciência» (VCC) foi publicada no jornal Diário de Lisboa (DL), vespertino publicado entre 1921 e 1990, tendo sido a sua primeira edição a 07 de abril de 1921 e a última a 30 de novembro de 1990. Caracterizava-se por ser um periódico que procurou isenção e liberdade na imprensa, mesmo durante o Estado Novo. Contribuíram para o jornal nomes como Fernando Pessoa, Fernando Assis Pacheco, José Saramago, Luís Sttau Monteiro, Eduardo Prado Coelho, Fernando Dacosta entre outros.

Entre 1965 e 1969, o Diário de Lisboa assumiu a publicação da primeira secção dedicada à Ciência e à investigação científica num jornal diário em Portugal. Publicada à terça-feira sob a designação de Vida Científica e mais tarde de Ciência, contou com a colaboração de vários organismos públicos, nomeadamente laboratórios de estado, do Serviço Meteorológico Nacional e do Instituto Hidrográfico da Marinha, e imprensa internacional, nomeadamente revistas existentes em bibliotecas de Lisboa e dos institutos de outros países, como os casos do Instituto Francês, o Instituto Britânico, o Instituto Alemão e a Biblioteca Americana, e revistas como a Nature, Science, Scientific American, New Scientist, Science et Vie, Science et Avenir. Estabeleceu contactos com organizações internacionais, como o caso da UNESCO e OCDE, assim como com embaixadas em Lisboa, em particular a de França, Israel e Japão. Beneficiou do exclusivo com o Le Monde, o Le Courrier da UNESCO e o L’ Observateur da OCDE.

Criada por Rui Namorado Rosa, à época investigador no Laboratório de Física e Energia Nuclear (LFEN), Maria Beatriz Ruivo, à época recém-licenciada em Ciências Física e Química pela Faculdade de Ciências de Lisboa (FCUL) e Elsa Anahory, à época recém-licenciada em Geologia, também pela FCUL. Tiveram o apoio de Mário Neves, à época diretor adjunto do DL, iniciou a sua publicação a 01 de junho de 1965 com a designação de Vida Científica, tendo sido alterada para Ciência a 28 de maio de 1966 e mantendo-se assim até à última publicação a 17 de junho de 1969.

Esta página surge com o objetivo de ser divulgadora e comunicadora de Ciência, numa época em que nada existia em Portugal com este intuito, pretendendo ser igualmente um meio de comunicação entre académicos, investigadores, professores e estudantes. Discutia-se na época o papel da televisão enquanto comunicador de ciência, assim como a importância do filme documentário, tendo a Vida Científica dedicado um destaque ao «Colóquio em Defesa da Divulgação Científica Correcta», organizado pela Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais a 10 de janeiro de 1967, como também um artigo de Machado Jorge, intitulado «Criação Científica e Divulgação» publicado a 05 de novembro de 1968. Foi opção de os editores centrar a divulgação em temas das ciências exatas e naturais, assim como das engenharias e ciências médicas, muito embora, à época as ciências sociais e humanas fossem já consideradas Ciência.

Foram notícia a criação de novas sociedades científicas a nível nacional e internacional, bem como a ação de diversas instituições e sociedades que viriam a ser muito relevantes, como o caso da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Organização Europeia de Pesquisas Espaciais (ESRO) e da Organização Europeia de Biologia Molecular (EMBO).

Também o papel das mulheres na Ciência é abordado, nomeadamente com a publicação de informação sobre o associativismo das mulheres Engenheiras fora do país, com a publicação de uma notícia sobre o 2º Congresso Internacional das Mulheres Cientistas e Engenheiras no Reino Unido, a 24 de setembro de 1968. Assinalou-se o centenário do nascimento de Marie Curie a 07 de novembro de1967, com a publicação de um artigo sobre a sua vida e fotografias da própria, assim como também de outras mulheres galardoadas com o Prémio Nobel, nomeadamente Dorothy Crawford-Hodgkin, Prémio Nobel da Química em 1964.

Salientou-se a importância da participação do público, cujo exemplo são alguns boletins postais e cartas de leitores recebidos pela VCC, assim como a importância da Educação através do Ensino e do Ensino de Ciência, referindo um texto da OCDE sobre a importância da instrução publicado em 20 de maio de 1969. Também em 1965, publica-se uma entrevista a Flávio Rezende, botânico e professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, publicada em 02 de novembro de 1965, na qualidade de delegado da Fundação Calouste Gulbenkian nas II Jornadas Luso-Espanholas de Genética, onde o tema da reforma do ensino é abordado.

Destacou-se o papel dos organismos internacionais e multilaterais como a OCDE, ONU – UNESCO e Comité Científico da NATO.

Mas o principal terá sido a importância da reforma do ensino superior em Portugal, e não só, sobretudo o ensino de ciência e as instituições que poderiam fazê-lo, comparando com o ensino de ciência no mundo, salientando o ano de 1967 como sendo o ano em que a discussão aconteceu,  através da publicação de um texto de Flávio Rezende em janeiro desse mesmo ano, logo após o seu falecimento, onde é referida a importância da criação de Institutos extra universitários onde se pudesse desenvolver ciência e não «ciência básica», numa perspetiva muito critica, destacando-se o papel dos países menos desenvolvidos, em que não poderiam ser eles investigadores de ciência, o que os manteria dependentes de outros, ditos mais desenvolvidos.

Pretendia-se a revisão das instituições de ensino superior universitário e melhorar as suas instalações, nomeadamente os laboratórios apetrechando-os com equipamento para desenvolvimento de trabalhos científicos, aliado ao problema da falta de verbas para a manutenção diária destes equipamentos.

A VCC cobriu congressos relevantes, como o organizado pelo Comité de Investigação Científica da NATO sobre a situação da I&D nos países mais atrasados da Aliança Atlântica, nessa altura, Grécia, Itália, Portugal e Turquia.

A divulgação temática também aconteceu, nomeadamente do que se dizia a «Moderna Biologia» como a Biologia Molecular, tratando de temas como ADN e ARN. Abordaram-se questões da Física e Engenharia Nuclear, Física de partículas, a divulgação de temas como o laser, a datação por Carbono 14. Estávamos no auge da investigação espacial, falou-se de astronomia e astrofísica, a possibilidade de missões a Vénus, a Lua e os preparativos para a chegada do Homem à Lua, acontecimento que foi sendo apresentado entre outubro de 1968 e 1969 e a colocação de satélites em órbita. Falou-se de computadores, à época designados de ordenadores por influência francófona do termo ordinateur, energia solar, a energia nuclear, geodesia, geologia, paleontologia, vulcanismo, sismologia, geofísica, meteorologia e até melhoramento de plantas, zootecnia, ambiente e poluição. Nas ciências médicas falou-se de imunologia, cancro, o início dos transplantes de coração e regulação da natalidade com o tema da pílula, que constituiu um desafio à censura da época.

Num período em que havia uma grande restrição à divulgação de ideias e informação, a VCC foi uma experiência levada a cabo pelo entusiasmo de jovens investigadores que viram neste convite a oportunidade de fazer diferente e participar ativamente na divulgação de informação científica, de uma forma quase universal, e acessível a todos. Fizeram, sem o serem, jornalismo científico, atingindo tanto público especializado como público interessado por estes temas.

O Arquivo de Ciência e Tecnologia tem à sua guarda um pequeno dossier de documentação da Vida Científica/Ciência, nomeadamente material para publicação que não chegou ao revisor e à tipografia, assim como correspondência, sobretudo recebida, que está descrita e digitalizada, e que poderá ser consultada aqui. Este conjunto documental foi doado por Beatriz Ruivo e Leonor Areal ao Arquivo de Ciência e Tecnologia no passado mês de fevereiro de 2022.

Novembro de 2023

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Bibliografia

Lobo, Cláudia (2022). O essencial sobre o Diário de Lisboa. Imprensa Nacional. Lisboa.

Lusa (2011, junho 30). Diário de Lisboa regressa uma vez por ano para manter viva memória de jornal de referência. Público

Ruivo, Beatriz (2018). A secção vida científica ciência do Diário de Lisboa (1965-1969). SINAPIS editores.

Ruivo, Beatriz (2021, novembro 30). A secção Vida Científica/Ciência no Diário de Lisboa (1965-1969) [Apresentação de comunicação]. Colóquio “São mesmo as últimas”: Diário de Lisboa 1921-1990, Fundação Mário Soares e Maria Barroso, Lisboa, Portugal.